Exhumando a história
Embora siga com sentimentos mistos a última iniciativa do juiz Garzón, penso que vale a pena estar atento ao desenrolar das exhumações e à poeira que isso vai levantando. Garzón mostra sentido táctico ao escolher começar por exhumar sete "rojos" republicanos colocados, contra a vontade das suas famílias, no mausoleu fascista de Valle de los Caídos. Este conjunto de edifícios, uma das mais feias nódoas na paisagem (natural, política e social) da Espanha moderna, inaugurado em 1968 num acto que sinaliza bem o gritante anacronismo do regime, debatia-se desde o início com uma embaraçosa falta de corpos... franquistas! Por isso houve que buscar vítimas entre os "rojos", algo que, sem grandes surpresas, havia por aí em abundância bastante maior.
Recorde-se também, já agora, que esses corpos tiveram de ser exhumados e trazidos para a Serra de Guadarrama para serem colocados num monumento que proclamava a sua própria desgraça. Os mesmos campeões da cristandade que agora apontam, beatos e preocupados com a imagem da Espanha conservadora, para a necessidade de deixar os mortos bem enterrados, participaram nesse processo sem pestanejar (para não falar da própria guerra, claro). Por tudo isso - e sublinhando mais uma vez que não sou um fã incondicional do juiz Garzón - penso que mais valem, neste contexto, actos de coragem um tanto arriscados do que deixar tudo coberto por um véu de hipocrisia que serve mais a direita do que a esquerda. O silêncio serve, neste caso, muito mais os que cometeram os crimes e depois viveram durante quatro décadas sossegados à sombra da bananeira franquista, do que aqueles que, tendo cometido os seus próprios crimes, foram julgados, e viram destruídas não só as suas vidas, como também as das suas famílias, até à morte de Franco em 1975.
Já agora, a foto acima colocada foi tirada por um soldado franquista. Cabe sempre recordar como muitos combatentes, de ambos os lados, se viram arrastados para um conflito com o qual não se identificavam. Porque nisto como em todo o resto, quem se lixa é geralmente o mexilhão.
3 Comentários:
«um véu de hipocrisia que serve mais a direita do que a esquerda?»
Mais do que isso, a questão da esquerda e da direita nem se deveria colocar. Existem crimes, crimes de estado, por punir. Ponto. E devem ser investigados. Dizer que isso coloca em causa acordos feitos no período de transição é aceitar que contratos estabelecidos sob coacção têm validade jurídica. Não têm. Em nenhum sistema judicial ocidental.
Discussões processuais são legítimas, Garzon não é conhecido pela sua ortodoxia, e os príncipios devem ser iguais para todos. Porém, sendo legítimas, não essenciais.
r.
"Exumar" é sem h, ó estrangeiro. Mas belo texto, sim senhor. Ah, como eu queria ser espanhol...
AM
Epá, apanhaste-me... se eu lesse O Jogo, não dava erros assim.
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