23 junho 2009

Um amigo que parte para a Síria

Eles andam no Eufrates à procura de uma fronteira


23.06.2009, Alexandra Lucas Coelho

Quatro arqueólogos, um deles português, vão passar Julho a escavar uma garganta do Eufrates, na Síria. Terá sido a fronteira de vários reinos, desde a cultura suméria ao Império Bizantino.
E milhares de anos depois, homens, mulheres e crianças continuam a viver com o rio. Há uma ex posição de fotografia a documentá-lo no Museu de Arqueologia.

Por Alexandra Lucas Coelho


Francisco Caramelo vai começar a fazer a mala. Agora está em Lisboa, mas no fim da semana estará na Mesopotâmia, ali onde tudo começou - a escrita e o bronze, a agricultura e as cidades.
Único português numa missão ibérico-síria, passará 35 dias a escavar uma garganta do Eufrates em busca da fronteira de um antigo reino.

Mas antes de partir ajudou a montar a exposição de fotografia Eufrates: um rio de histórias, que pode ser vista no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, desde terça-feira.

Os antigos chamavam Mesopotâmia às terras entre o Tigre e o Eufrates. Aí se estabeleceram civilizações como a suméria ou a assíria, cidades-estado como Ur, Uruk, Babilónia, Mari, Ashur ou Nínive. E o rio dos rios era o Eufrates, sinuosa fita de 2800 quilómetros que, pelos mapas de hoje, nasce no Sul da Turquia, desce pelo Nordeste da Síria e atravessa o Iraque até desaguar no Golfo Pérsico.

A parte síria é, pois, a parte do meio, e por isso os investigadores lhe chamam Eufrates Médio. A primeira vez que a arqueologia portuguesa lá pôs o pé foi a primeira vez que Francisco Caramelo fez a mala para começar a escavar esta garganta nunca antes escavada, 70 quilómetros a norte de Deir-ez-Zor, a maior cidade da região. Isso aconteceu em 2005. E de ano para ano a mala aprendeu a ficar mais leve.
Então, à quinta campanha o que é que Francisco leva? "Botas para a escavação e ténis para o trabalho no museu [sírio local]. Calças e coletes com muitos bolsos, porque ando sempre com uma pequena máquina digital e tiro muitas notas em pequenos blocos." Já vai em 15, completamente escritos. "São notas que têm a ver com o trabalho, mas também com o que observo, como uma espécie de diário." Mais? "Uma bússola. Um cantil porque temos de beber litros de água. Artigos de bibliografia. Um computador portátil. Música e leitura pessoal, Eugénio de Andrade, Fernando Pessoa." Só poesia, porque os romances "exigem demasiado tempo à noite" a escavadores exaustos.

Quanto à cabeça, qualquer boné é inútil. "Usamos lenços palestinianos, que são a forma mais eficaz de nos protegermos do calor e do pó. Cobrem as orelhas e o pescoço, e podemos usar uma ponta para tapar a cara quando o vento se levanta."
E com tudo isto enfrenta 50 graus de temperatura, seis dias por semana, coordenado com arqueólogos, arquitectos e topógrafos.
Não é um passeio.
De sábado a quinta, acordam às quatro da manhã em Deir-ez-Zor. Bebem chá e saem às quatro e meia. Uma hora de estrada até à garganta de Halabiyé, conhecida localmente como Hanuqa (estrangulamento), por ser um estrangulamento do rio. Aí, encontram os 12 trabalhadores sírios locais. Trabalham na escavação até às nove e meia, tomam o pequeno-almoço, e voltam a trabalhar até ao meio-dia e meia, altura em que o calor se torna impossível. Voltam à cidade, almoçam, e das quatro às sete, trabalham no museu de Deir-ez-Zor. "Os topógrafos nos computadores a fazerem mapas, os arquitectos a desenharem, os arqueólogos a desenharem peças que antes tiveram de ser lavadas, reconstituídas, coladas." Idealmente deveriam estar na cama às dez, mas às vezes há imprevistos para resolver. E à sexta, folga na escavação e no museu, os arqueólogos preparam a semana.


Francisco Caramelo estudou árabe clássico, e isso tem feito toda a diferença na Síria. "É muito importante para comunicarmos com os trabalhadores na escavação. E foi muito importante para criar uma relação de confiança no início. Aparecíamos como uns intrusos na aldeia quando as pessoas estavam a acordar e era importante perceberem o que andávamos ali a fazer, que éramos amigáveis, que o nosso interesse era respeitar a herança deles. E ao segundo ou terceiro dia já nos vinham oferecer chá, trazer água, já o sorriso era largo."
O pequeno-almoço é "um momento muito feliz" também por isso.
"Combinámos com uma família que mora ali ao pé que às nove e meia nos abrem uma divisão da casa. É muito fresquinha, em adobe, e há tapetes no chão e almofadas. Sentamo-nos descalços e eles trazem-nos o pão típico, com tomate, pepino, às vezes ovos mexidos, uma peça de fruta, chá com muito açúcar. É um banquete. Por vezes está o patriarca da família."

O árabe de Francisco não é o dialecto local, mas chega para perguntar pelos filhos, pelas colheitas, pelos animais, para uma pequena conversa humana, que põe o arqueólogo no presente.

E assim é lá fora, também, entre as mulheres de roupas coloridas e cara destapada que fazem pão, que ordenham vacas, que cuidam dos campos de milho, de algodão, de beringela; entre as crianças, sempre muitas, que mergulham, que remam, que tocam cabras e ovelhas nas margens do Eufrates como os sumérios nos relevos de há cinco mil anos.

"O rio é a sobrevivência, é a irrigação, mas também é a diversão, as crianças vão rio abaixo a boiar", diz Francisco. É esta continuidade que se vê nas fotografias do espanhol Eloy Taboada agora expostas no Museu de Arqueologia. O que não se vê é que o rio já não é um canal de transporte: "Na antiguidade era usado para a circulação de pessoas, de mercadorias e de ideias."
Pelo Eufrates vinha madeira, pedra, estanho para endurecer o cobre e daí resultar o bronze, metal das armas e dos utensílios que marca uma nova era. Tão longe chegava o comércio que o estanho vinha até do Afeganistão, tal como o lápis-lazuli com que se esculpiam os olhos das esculturas.
São assim, de lápis-lazuli, os expressivos olhos de Ebih Il, um sumério esculpido em alabastro há 4400 anos, que hoje é uma das jóias do Museu do Louvre. Ebih Il tem a cabeça rapada, uma barba pontiaguda, o tronco nu e a saia então usada por homens e mulheres, feita de pele e lã de ovelha. O olhar é radioso e as mãos estão postas em oração, provavelmente à deusa Ishtar, porque foi no Templo de Ishtar, deusa da fertilidade, que os arqueólogos o encontraram.

Sabemos quem é este homem porque na pedra está gravado: Ebih Il, Intendente de Mari.

Fundada nos princípios do terceiro milénio a.C. e destruída mais de mil anos depois pelo rei babilónio Hamurabi, a grande cidade de Mari foi o porto mais ocidental da cultura suméria, e controlava o comércio entre o Norte e o Sul do Eufrates, justamente por estar a meio. Os arqueólogos que a estudam há muito pensam que a sua fronteira Sul corresponderia à actual fronteira da Síria com o Iraque, mas o Norte é uma incógnita.
E é essa a missão da equipa em que está Francisco Caramelo.
"A nossa hipótese é que a fronteira Norte de Mari estaria nesta garganta que estamos a escavar", diz Juan-Luis Montero, o espanhol co-director do projecto, que veio a Lisboa montar a exposição. "Esta garganta é um ponto-chave de controlo. E o que estamos a ver é que foi uma fronteira não só de Mari, mas de outras épocas, até ao período bizantino. Quase quatro mil anos."

Mari foi escavada em 1933 por arqueólogos franceses, no tempo em que a França era a potência colonial e a arqueologia era um saque colonial. E depois, ao longo de décadas, foi extensamente estudada. Mas 70 quilómetros acima de Deir-ez-Zor ninguém escavou.

Até que, em 2004, as autoridades arqueológicas da Síria assinaram um acordo com a Universidade da Corunha para investigar a zona. Juan-Luis Montero e o sírio Shaker al-Shbib são os arqueólogos directores do projecto. E Francisco Caramelo e o seu colega espanhol Ignacio Márquez representam os parceiros associados - Centro de História de Além-Mar (Universidade Nova de Lisboa/Universidade dos Açores) e Consejo Superior de Investigaciones Científicas (Madrid). O contributo financeiro português tem sido de 2500 euros, e este ano andará entre 3500 e 4000 euros, por causa de um colóquio e da actual exposição, explica o director do CHAM, João Paulo Oliveira e Costa.

O arco temporal do projecto é imenso, da aparição da escrita, há cinco mil anos, à chegada do islão, no século VII. Por exemplo, nas três primeiras campanhas, ao escavarem um ponto chamado Tall-as-Sin, os arqueólogos chegaram a uma provável fortaleza bizantina, com centenas de sepulturas, cruzes gravadas e inscrições em grego. Ou seja, provas de ocupação nos primeiros séculos depois de Cristo.

Em 2008, a equipa concentrou-se num ponto mesmo dentro da garganta, Tall Qabr Abu al Atiq. Encontrou cerâmica de 2600 a.C. (a chamada Idade do Bronze) e do século XIII a.C. (o chamado período médio dos assírios), quando a grande cidade de Mari já não existia.

Portanto, depois de ter sido fronteira de Mari e antes de ter sido fronteira bizantina, esta garganta "pode ter sido uma fronteira assíria, do rei Tukulti-Ninurta, que estava baseado em Ashur, na margem direita do rio Tigre", diz Francisco.

Como se chamava esse enclave assírio? Quando foi fundado? Quem o destruiu? É para saber isto que Francisco Caramelo vai fazer a mala. E cada caco de cerâmica encontrado será para o Museu de Deir-ez-Zor. "Tudo é para ficar."

Lá vai o tempo em que Ebih Il, o Intendente de Mari, foi parar ao Louvre.



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