A resistência é o retorno
«A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava. Insignificantes cabrõezinhos, se eu havia de dizer a verdade, se eu havia alguma vez de dizer a verdade. Os lerdos das ideias, lentos, com conta no Montepio, doentes dos olhos por olhar de viés para esses gajos que vêm cá roubar o pouco que é da gente, que a gente cá tem, esses retomados, tão altivos como príncipes que perderam o trono, e que hão-de recuperá-lo, julgam eles, oh, se não!, porque nada atiça as ganas como perder, e perder bem, à americana. Tão feios, tão pobres de espírito esses portugueses que ficaram, esses portugueses de Portugal, curtidos de vinho do garrafão. Feios, sombrios, pobres, sem luz no rosto nem nas mãos. Pequenos. »
Isabela Figueiredo, "Cadernos de Memórias Coloniais
2 Comentários:
Ah, os ajustes de contas...
Mmm, esse toucinho e essas couves... Estou mesmo a ver a gente da Penha de França a desconfiar do pessoal que vinha de África roubar-lhes o seu quinhãozinho dos restos que o regime atirava aos portugueses que não eram parte da elite. Hoje, pelo menos, a gente tem o estômago cheio. E isso basta para enganar a gente.
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